10.1.12

Gal Costa entre o calor do canto e a frieza eletrônica

Por Leonardo Lichote (em O Globo)

Gal Costa se apresenta, sombria, no primeiro verso do CD “Recanto” (Universal), dando voz às palavras que Caetano Veloso escreveu para ela: “Eu venho de um recanto escuro”. Sobre o canto, um martelar eletrônico grave que, em seu timbre e irregularidade, soa como ruído, sedutor efeito-defeito. O disco, todo com canções do baiano e quase integralmente feito sobre bases eletrônicas (só uma faixa é acústica), traz o tempo todo a fricção entre o calor do canto de Gal e a dureza dos sons que o acompanham ou o alteram digitalmente — “Roço a minha voz”, diz outro verso do CD. Ideias negativas como “Tudo dói/ Viver é um desastre que sucede a alguns” estão ali. Pode não parecer, mas isso tudo é (também) bossa nova, é muito natural.

— Gal me surpreendeu ao identificar João Gilberto na canção que eu e Kassin (responsável pela maior parte das bases) víamos como a mais radical, “Tudo dói” — conta Caetano, idealizador do CD que marca a volta de Gal a um disco de inéditas (o anterior, “Hoje”, é de 2005).

Gal explica:
— Vejo a bossa pela radicalidade, isso me fez pensar em João em “Tudo dói”. A estranheza de melodia me atrai. E isso é João, é a primeira vez que ouvi “Chega de saudade”.

Mais que uma referência para “Recanto”, a criação de João Gilberto estaria então na sua base:
— A bossa está no cerne de nossa ambição de inventividade — diz o cantor. — Mas só “Mansidão” e “Madre Deus”, únicas não inéditas (feitas respectivamente para Jane Duboc e “Onqotô”, espetáculo do Grupo Corpo) são mais próximas da bossa.

A bossa nova também paira — invisível — sobre o CD ao atravessar a relação de décadas entre Caetano e Gal. Ela está evidente em “Domingo” (disco de 1967 assinado pelos dois) e “Cantar” (dela, de 1974, produzido por ele), além de ter sido a razão do encontro da dupla (“Ela ainda é a menina que conheci porque gostávamos de bossa nova”, escreve Caetano no encarte). “Recanto escuro”, que abre o CD, passeia enigmática pela biografia dos dois.

— “O chão da prisão militar” ela não viu, mas está nela. Quando eu e Gil fomos exilados, ela fez a coisa mais forte de inserção dela na música brasileira, o “Fa-tal”. Há outras referências. Quando a conheci, ela passava uma sensação de solidão. E Salvador tem uma luminosidade brilhante. Por isso “O sol, luz perpendicular/ Do outro lado azul do muro/ Não vou saltar”. Ouvíamos jazz no bar Bazarte, e isso está na letra (“Cool jazz me faz feliz e só”).

A vida deles se cruza ainda em “O menino”, feita por Caetano inspirado na relação de Gabriel (filho adotivo de Gal, de 6 anos) com a cantora e, num segundo momento, a partir de uma perspectiva cristã — motivada pela fé de seus filhos Zeca e Tom.

No disco, “O menino” pousa, redentor, num mundo que dói.
— “Tudo dói” é nuclear — afirma Caetano. — Desde o início da inspiração de fazer algo eletrônico, queria não ter medo de dizer coisas que parecessem negativas. “Tudo dói” diz com palavras duras o espanto de existirmos, a dor do mundo.

Foto feita para a revista Rolling Stone
A observação sobre o Brasil também está em “Recanto” — produzido por Caetano e seu filho Moreno. A nova classe média aparece em “Neguinho” (“Adoro o fato de usarmos para se referir às pessoas em geral”, diz Caetano) e “Segunda”, que quase batizou o CD, em referência a “Domingo”. “Segunda” também é a única sem eletrônica — Moreno toca violão, cello e prato e faca. A periferia está em “Miami maculelê” — que cruza um tamborzão de Kassin com tambores de Santo Amaro, pondo no caldo os bons ladrões São Dimas e Charles Anjo 45 — e na poesia popular da expressão “é nós”.

Show estreia em março - O canto — que aparece sobre as programações de Kassin, Rabotnik, Duplexx e Zeca Veloso, filho de Caetano — é tema central. Isso aparece desde o nome até canções como “Autotune autoerótico” — que faz referência ao programa usado para afinar vozes.

— Fui apresentado a Gal porque ela cantava bem. Não fui conhecer uma pessoa, e sim um canto.

Um canto que ainda é capaz de surpreender Gal, aos 66 anos:
— Minha voz tem o meu controle e ao mesmo tempo não tem — diz Gal, que chama a atenção para o efeito de “suingar as notas” em “O menino” como algo que reconhece, mas não controla.

Gal não acredita que a radicalidade do CD vá chocar seu público:
— Quem me segue espera de mim a ousadia. Sou a que canta Tom Jobim e que faz coisas arrojadas.

O show, que estreia em março, terá direção de Caetano. A concepção inicial é usar dois, talvez três músicos no palco, reproduzindo fielmente as canções do disco e aplicando a nova estética a clássicos de Gal:

— Talvez “Divino, maravilhoso” — cita o compositor. — Queremos fazer referência a momentos da carreira de Gal que confirmem ou contrastem com o agora. Deve ter partes de voz e violão. Temos a ideia de fazer “Baby” com playback do arranjo original de Rogério Duprat.

Recanto (Universal)
GAL COSTA
Produção: Caetano Veloso e Moreno Veloso.
Preço médio: R$ 30

Continue a leitura para ver a matéria publicada na revista Bravo! de dezembro de 2011, que teve a cantora em destaque de capa.

Clique nas imagens para ampliá-las.

Nenhum comentário: