8.4.07

Outros tempos


Eu tenho o espírito bem saudosista. Sinto saudades até do que não conheço, do que nunca vivi. Saudades e vontades. Uma das minhas vontades era, ou é, ter vivido em outra época, outros tempos mesmo. Sei que é impossível. Quer dizer... nunca ouvi dizer de alguém que tenha vivido dois tempos diferentes ao mesmo tempo.

A música que toca agora aqui é Here We Go Again, do Ray Charles, começo a viajar... Passo por uma rua escura após sair da boite onde sempre encerro minhas sextas feiras, piano, blues e algumas mulheres. Meu chapéu e meu casaco me protejem dos finos pingos de chuva. A rua deserta por onde passo me faz lembrar que em casa só terei a minha própria companhia. E que o meu sábado não terá nada de novo. Churrasco com os vizinhos e uma partida de baisebol no gramado. O fim da música me faz voltar para o Brasil, Gal começa a cantar Como 2 e 2.

Década de 70... época que eu teria gostado de viver. Época da ditadura, da repressão, da censura. Da rebeldia, da explosão cultural, das manifestações populares. Poderia ver Pelé jogar. Poderia ter um Fusca e ainda assim fazer sucesso. Poderia ter visto Caetano, Gil e Elis... Gal... ouvir os versos rebeldes da época.

The Beatles... volto a um mundo pacato. Solitário. Não consegui me transportar.

Período de guerras??? Acho que não.

Um bom tempo pra viver: início do século XX. No Brasil. Ía asistir à Semana de Arte Moderna? ía ver a construção de Brasília? Ía poder ler a jornais com textos de verdade... Ia poder passear por parques e ruas, tranquilamente. Ia ver o cinema bem diferente do de hoje. Saraus, encontros e caffes repletos de intelectuais e eu lá, poderia ser mesmo um engraxate.

De bermuda cinza feita com os restos de uma calça velha pelas delicadas mãos da minha mãe, camiseta de linho branco engomada, meias até o meio da canela e sapatos bem engraxados, por mim mesmo. De suspensórios e com cabelos bem penteados, jogados para o lado. No bolso o meu lanche, um doce de banana enrolado num pedacinho de papel.

A caixa com o material de trabalho bem mais pesada que o meu franzino corpo, os braços finos doíam para poder carregá-la. Olhava curioso para os homens com charutos e jornais nas mãos. As mulheres todas bem e muito vestidas, leques, sombrinhas e chapéus.

Falavam sobre tudo, sobre um tal de Campos Sales, sobre café com leite, sobre uma coisa chamada realismo, sobre canudos, sobre duas mulheres também, Chiquinha e Ciata, essa eles chamavam de tia e um dia eu sai dalí e fiquei pensando no que eu havia escutado, o homem agora podia voar.

Fiquei olhando para os meus braços, não vi nada de diferente, não havia nascido nenhuma pena. Nenhum sinal diferente. Eu estava começando a duvidar daquelas conversas. Será que aquelas pessoas se reuniam para inventar histórias e impressionar os bisbilhoteiros???

Parece que sim, afinal o Seu Campos nunca tava lá, nem dona Chiquinha e tal tia... Fiquei umas duas ou tres semanas sem ir até o caffe. Nem estava mais engraxando sapatos.

Resolvi voltar, ia perguntar para que tanta conversa? Na hora de sempre, sai de casa
às pressas. Cansado, entrei correndo no salão onde ficava as mesas onde eles se reuniam. Ninguem estava mais ali.

A música que tocava terminou. Minha viagem fica pela metade? Fica sem volta...

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