8.4.07

"Qui miséra!"


Aqui na Bahia essa expressão é frequentemente, de forma ridícula – é verdade, utilizada quando se demonstra surpresa por algo que não saiu conforme o planejado, ou mesmo para demonstrar a súbita raiva por algum motivo, ou simplesmente para substituir expressões não menos ridículas. Quem a utiliza não sente o peso que há no significado dessa palavra, ou melhor, desconhece o que de fato é a miséria. Para o famoso dicionário Aurélio, miséria é o mesmo que estado deplorável; indigência, penúria.

O menino que vive com os pés no chão na periferia de uma grande cidade, dividindo a rua onde brinca com lixos, porcos e urubus, talvez não saiba que o seu estado é deplorável, ou seja, de completa miséria, mas sabe que quando chegar a sua casa a mãe não terá o que lhe oferecer para comer e, que certamente, vai dormir com a barriga vazia. O senhor cego que vaga pela rua pedindo esmolas talvez não reconheça que é tão miserável quanto o menino, mas sabe que vive na penúria, que depende dos outros para poder sobreviver. Sabe que não pode comprar pão ou mesmo um par de chinelos sem a ajuda alheia.

A ajuda alheia não vai resolver a situação de indigente do senhor e não vai colocar o que comer à mesa de todos aqueles que estendem as mãos em busca das migalhas. A ajuda alheia deixará de ser uma esmola quando houver o reconhecimento de que é a igualdade entre os homens, e a luta por ela, a prioridade entre todos os outros valores que assumimos na busca pela harmonia nas relações entre o homem, a Terra e ele mesmo.

Mesmo assim, declarar igualdade não adianta, fazer discursos muito menos. É preciso, antes de qualquer outra coisa, enxergar que nossa sociedade já não tem nenhum valor humanitário em sua essência. Estaria ela, há muito tempo, se tivesse vida própria, em uma crise existencial sem saída. Viver, hoje, é somente movimentar a máquina que consome a todos os homens, escravizando-os sem motivos, pois dessa produção só aumenta a necessidade da máquina continuar funcionando, e assim continuamos a nos iludir achando que um dia alcançaremos o que não existe, pois já perdemos o objetivo e, por isso, o controle da vida em sociedade já caiu por terra.

Educação, justiça, saúde, emprego, dignidade e outros tantos nomes bonitos poderiam compor uma lista das necessidades que existem em cada canto para superar a pobreza, a desigualdade social e a miséria que é a atual tentativa da sobrevivência humana. Mas não, de nada adianta tanto se não há oportunidades para todos, a dita sorte que uns têm e outros não. Se o homem não conseguir olhar para o lado e reconhecer no senhor que lhe estende a mão, ou no menino de pés descalços, um outro homem com os mesmos direitos como qualquer outro, continuaremos nos espantando com os noticiários da TV e tendo como única reação expressões do tipo: “qui miséra!”, como se aquilo acontecesse pela primeira vez.

A miséria é tão humana quanto o homem, ou até mais, pois a ele é concedido o papel de pai e mãe dessa desigual realidade de hoje, mas é a ele que está concedida a chance de corrigir o erro por essa criação. Rever os valores, buscar os reais sentidos da vida e declarar guerra a si mesmo são os primeiros passos a caminho da luta a favor da sobrevivência.

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