15.12.07

Organizando minha revolta


“Eu seria um pouco mais feliz... Um pouco não, bastante. Aliás... Bem mais feliz se tivesse vivido os anos em que o governo brasileiro vestia-se com as fardas militares” – foi esse o meu pensamento dia desses, e resolvi achar que isso é uma verdade. Talvez a minha vontade e a minha persistência em alimentar uma ideologia de esquerda e algumas utopias estejam intimamente ligadas com esse fato.


Existe uma voz que às vezes me diz, e não diz de qualquer forma, é com alto e bom som, como quem tenta me convencer aos gritos: “deixe de ser idiota, vai fazer alguma coisa pra sua vida, otário!”. Talvez essa voz esteja querendo me mostrar que eu não preciso estar preocupado com o menino que brinca dentro do lixo a procura de comida. Talvez ela seja uma tentativa de me mostrar que a moça sem emprego é apenas uma despossuída de sorte. A voz insiste, a voz grita, e eu me faço de surdo, não me permito ouvir e continuo achando que a época da censura, do AI-5 e da perseguição seria bem mais prazerosa.


Da mesma forma, eu estaria envolvido com a luta (ou ao menos com a tentativa de lutar) pela transformação social, isso é fato, e não me intimido a admitir. Só que se fosse aquela época, ahhh... o fazer pelo coletivo, pela sociedade, o simples pensar no coletivo, carregaria outra dimensão emocional. Hoje todos se acomodaram à liberdade que dizem existir, cada um caiu na sua vidinha particular, cada um segue passos que só visam ultrapassar os passos do companheiro que caminha logo ao lado. E aquela voz... É isso que ela quer: que eu encontre uma estradinha pra seguir, deixando pra trás os meus ideais, os motivos que me fazem caminhar em torno do mundo de todos, ao qual pertenço, e não em torno do mundo que a voz diz existir, ao qual só eu pertenço.


E nessa briga, por ora, pareço distante. Volta e meia, deliro. Um passo a frente, levanto vôo. É aí que a maldita voz me puxa para a terra firme (?) – o pior é que eu vou. Me arrasta até que eu volte a pisar o chão. Fico pior, misturo tudo: a minha vidinha, suas miudezas e suas mazelas, e a minha luta, comigo mesmo e com o meu eu que carrega a responsabilidade de um esquerdista (?). É o cartão de crédito a pagar, é o filme novo em cartaz no cinema, é o tempo que fico no ônibus até chegar ao shopping, é a roupa suja pra lavar no tanque e a ração do cachorro que preciso comprar. Soma-se a tudo isso a minha rebeldia contida em minhas palavras, que juntas ao meu inconformismo se contorcem em meus pensamentos para conseguir um espaço na minha agenda imaginária.


Não fico triste quando vejo um projeto meu, ou uma simples idéia, se despedaçar, um projeto que a princípio tornaria minha vida e a de muitas pessoas um pouco melhor, segundo minhas pretensões utópicas. O que me entristece é ver que há pessoas sem perceber que a vida precisa melhorar, são aquelas pessoas que a voz arrastou para a vidinha particular (só pode ser!), pessoas que perderam ou que nunca encontraram o sentido e o significado da palavra viver, que não projetam suas vidas para viver em um mundo coletivo. Tenho esse compromisso firmado comigo mesmo: não me deixar levar por essa voz.


Carrego como verdade também que minha existência, minha humilde passagem pela Terra, tem utilidade, quase que pública, como dizem. Aliás, a de todos, afinal não é a Terra o espaço de apenas uma pessoa. Utilidade essa que tento reconhecer como uma responsabilidade social, a mesma que qualquer um deveria reconhecer: a de ser um ativista para recuperar a essência de todo ser humano que mereceu essa oportunidade que é desfrutar da vida. Eu fico meio confuso quando tento organizar minhas idéias, minhas loucuras, meus botões. As minhas listas do que vou fazer amanhã são totalmente cumpridas sempre depois de amanhã e sempre sobra algo que deixei ou que não consegui fazer porque não dependia só de mim.


Já cumpri, e muito, listas alheias. Adiantei o amanhã de muitas pessoas para hoje. E fico deixando a voz que persiste em dizer que eu devo fazer apenas pra mim de lado, ignoro-a sem a curiosidade de querer saber de onde ela vem. Pego as listas incompletas dos meus dias e refaço, volto ao passado, faço hoje o que foi pra ontem, ou para o mês passado, reorganizo, volto e revolto. Vou organizando a minha revolta. Voltas que dou sempre ao redor de um conjunto numérico repleto de interseções, conhecido como o mundo coletivo, vidas que se cruzam e que se mostram comuns por algumas partes.


Queria sim, digo outra vez, ter a sensação de está sendo perseguido, de saber que corro o risco de ficar trancado em um calabouço, de ter visto a Gal ou o Caetano daqueles tempos no palco com suas mensagens subliminares, queria não poder gritar, queria ser forçado a me calar. Sabe por quê? Minhas limitações seriam alheias, as impostas a todos e expostas claramente, e eu estaria disposto a superá-las. Aceitaria como minha obrigação não me deixar submeter a essas pressões por simples vaidade dos que mandam. Diferente disso, eu fico me impondo desafios, não enxergando as limitações a serem ultrapassadas e me aborrecendo com as limitações que se impõem sem que eu perceba.


Aí começo de novo, volto à organização inicial, das idéias, dos pensamentos, dos inconformismos. A vontade de chutar o balde e de gritar na cara de qualquer um que é nojento viver assim, vendo como todos ignoram a todos como quem diz “tá tudo muito bem...” e depois adormecem sobre a palha macia, só aumenta, só alimenta meu retorno à organização das minhas voltas, fico reorganizando voltas. Dando voltas e voltas, fico tonto, sento, deito, levanto e deliro, começo a me desorganizar, até que eu organizo a minha revolta.


Um comentário:

Anônimo disse...

Meu Amigo Ailton!!
Brilhante texto!!!
"Dando voltas e voltas, fico tonto, sento, deito, levanto e deliro, começo a me desorganizar, até que eu organizo a minha revolta."
Meu companheiro de ideais e ideologias...
Coloquei o seu blog como link... e quando visitar o meu não se espante com as semelhanças...rs