A revista mais vendida e “a referência” em jornalismo no
Brasil passou dos limites com a reportagem de capa dessa semana (“O Poderoso
Chefão” – 31 de agosto de 2011). Nela, o ex-ministro José Dirceu é “denunciado”
por manter um gabinete dentro de um hotel em Brasília onde recebe políticos
importantes e conspira contra o governo da presidente Dilma.
A questão é que a denuncia não tem sustentação alguma e,
pior, as provas apresentadas pela reportagem colocaram a revista numa situação
vergonhosa, denunciando suas práticas ilícitas para tentar provar hipóteses
formuladas (e intencionalmente calculadas) dentro da redação.
“Na edição da semana, por burrice ou amadorismo, a revista
produz prova robusta contra si mesma”, afirma Luiz Eduardo Nascimento em artigo
no Observatório da Imprensa.
Para conseguir provas contra José Dirceu, hoje dirigente do
Partido dos Trabalhadores, o repórter Gustavo Nogueira Ribeiro primeiro tentou
enganar a camareira para entrar no quarto do petista, dizendo ter perdido suas
chaves e que estava hospedado naquele quarto. Não obtendo êxito, teve de fugir
para não ser pego e a tentativa de invasão foi registrada na 5ª Delegacia de Polícia pela
gerência.
Depois, o repórter voltou ao hotel apresentando-se com outro
nome e dizendo que tinha documentos importantes da prefeitura de Varginha para
entregar a José Dirceu e que precisaria deixá-los dentro do quarto em que ele
estava hospedado. Não obteve a permissão e deixou um telefone para que o
ex-ministro fizesse contato. Amador, o repórter deixou o mesmo número que havia
dado na sua ficha quando se hospedou na primeira tentativa.
Ainda não se sabe como, mas o repórter conseguiu imagens da
circulação de pessoas no hotel, nelas aparece José Dirceu e outros políticos,
como os senadores Walter Pinheiro e Delcídio Amaral, o ministro Fernando Amaral
e o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli.
“Com a denúncia de tentativa de invasão e falsidade
ideológica pesava contra a revista apenas o fato do jornalista estar a seu
serviço, o que poderia ser justificado com a alegação que o seu contratado agiu
por conta própria, sem o aval da direção. Mas ao usar as imagens obtidas pelo
repórter, Veja assume cumplicidade e beneficiamento com os crimes conhecidos.
Na reportagem que fez com acusações contra José Dirceu, Veja afirma que ‘obteve’
imagens de circulação do hotel, dando a entender que se tratava de imagens da
câmera de segurança. Só não admitiu que obteve imagens ilegalmente através de
equipamento instalado pelo seu jornalista”, alerta Nascimento. “Agora, além de
tentativa de invasão de domicílio e falsidade ideológica, existe a confissão de
invasão de privacidade, não só de José Dirceu e os políticos mostrados, mas de
todos os hóspedes desse andar e dos funcionários do hotel”, conclui.
Para José Dirceu, a revista abandonou não só os critérios
jornalísticos e a legalidade, mas também os princípios democráticos. “A matéria
foi realizada no mais clássico estilo de polícia privada, a serviço dos setores
que a Veja representa. Viola o princípio constitucional da intimidade e
infringe o Código Penal. Ignora o direito a julgamento e condena previamente. É
um amontoado de invenções e erros”, declarou em artigo.
Em sua defesa, Dirceu escreveu:
“Sou cidadão brasileiro, militante político e dirigente
partidário. Essas atribuições me concedem o dever e a legitimidade de receber
companheiros e amigos, ocupem ou não cargos públicos, de qualquer partido, onde
quer que seja, sem precisar dar satisfações àVeja acerca de minhas atividades”.
“A revista tem o claro objetivo de destruir minha imagem e pressionar
a Justiça pela minha condenação. Sua campanha contra mim não tem limites. Mas a
Veja não fere apenas os meus direitos. Ao manipular fatos, ignorar a
Constituição, a legislação e os direitos individuais, a revista coloca em risco
os princípios democráticos e fere toda a sociedade”.
Para Alberto Dines, a revista prestou um desserviço ao
jornalismo:
“A matéria recoloca o jornalismo político brasileiro na Era
da Pedra Lascada. Traz de volta os vídeos clandestinos, os arapongas, os
dossiês secretos jogados no colo de jornalistas ditos ‘investigativos’. O texto
inteiro de Veja, da primeira à última linha, é customizado, adaptado para
servir à tese de que o ex-chefe da Casa Civil está conspirando contra a sua
sucessora, atual presidente da República. Não há evidências, apenas
insinuações, ambigüidades, gatilhos. A lista dos “conspiradores” é frágil e as
possíveis motivações, inconsistentes. O conjunto é disparatado, não faz
sentido, carece de lógica. Mesmo enquanto ficção”.
“Os encontros gravados duraram em média 30 minutos, tempo
insuficiente até para acertar uma empreitada de pequeno porte. Devidamente
investigados, os fatos poderiam vincular-se e ganhar alguma dimensão. No estado
bruto em que foram apresentados pelo semanário de maior tiragem do país
representam um atentado à inteligência do leitor, não renderiam sequer uma nota
numa coluna de fofocas políticas”.
“Este é um jornalismo que não se sustenta, é retrocesso. Não
favorece a imagem da imprensa, não ajuda a presidente Dilma, prejudica a
oposição. Faz esquecer a faxina moralizadora e degrada o processo político”.
Para Eliakim Araujo a Veja não surpreendeu: “Sabendo-se do
passado de Veja, entretanto, e das causas que abraça, não chega a surpreender
esse tipo de jornalismo praticado pela revista. São muitos os entrevistados de
Veja que se queixam de que suas declarações foram deturpadas, pelo mesmo método
usado na televisão: a edição”.
“Veja não mudou desde aquela aula naquela longínqua década
de setenta, mas mudaram os leitores. Quase quarenta anos depois, o número de
pessoas que se deixam enganar por Veja é muito menor. Afinal, o povo não é
bobo...”, disse, referindo a aula de um professor da faculdade de jornalismo
que citou a criatividade de uma antiga reportagem da revista Veja, na qual o
repórter colheu informações do investigado, a partir do que encontrou em seu
saco de lixo – “o bom jornalista deve usar de toda criatividade para obter uma
informação privilegiada”, defendia o tal professor.
Em sua análise, Ricardo Kotscho desqualifica a reportagem e
a coloca como um editorial:
“A sustentar a grave ‘denúncia’, a revista publica dez
reproduções de um vídeo em que, além de Dirceu, aparecem ministros,
parlamentares e um presidente de estatal entrando ou saindo do ‘bunker
instalado na área vip de um hotel cinco estrelas de Brasília, num andar onde o
acesso é restrito a hóspedes e pessoas autorizadas’. Nas oito páginas da
‘reportagem’ – na verdade, um editorial da primeira à última linha, com mais
adjetivos do que substantivos – não há uma única informação de terceiros que
não seja guardada pelo anonimato do off ou declaração dos ‘acusados’ de visitar
o bunker de Dirceu confirmando a tese da Veja”.
Kotscho fez duas boas lembranças:
“Depois de 47 anos de trabalho como jornalista: matéria de
tal gravidade não é publicada sem o aval expresso dos donos ou dos acionistas
majoritários. Não é coisa de repórter trapalhão ou editor descuidado”.
“De vez em quando,
convém lembrar que repórter não é polícia e a imprensa não é justiça, e também
não deveria se considerar inimputável como as crianças e os índios. Vejam o que
aconteceu com Murdoch, o ex-todo-poderoso imperador. Numa democracia, ninguém
pode tudo”.
Para o jornalista Luís Nassif, a matéria é “um cozidão
mal-ajambrado, uma sequência de ilações sem jornalismo no meio”.
E, ironizou: “Definitivamente não sei o que se passa na
cabeça de Roberto Civita e do Conselho Editorial da revista. Semana após semana
ela se desmoraliza junto aos segmentos de opinião pública que contam, mesmo
aqueles que estão do mesmo lado político da publicação. Pode contentar um tipo
de leitor classe média pouco informado, que se move pelo efeito manada, não os
que efetivamente contam. Mas com o tempo tende a envergonhar os próprios
aliados. Confesso que poucas vezes na história da mídia houve um processo tão
clamoroso de marcha da insensatez, como o que acometeu a revista”.
Para o senador Walter Pinheiro, o que a revista fez não é
jornalismo sério, “é bandalheira”.
“É óbvio que tem uma coisa por trás. É alguém tentando usar
isso para promover uma rede de intrigas. Essa talvez seja a intenção central
dessa matéria. Eu sou um árduo defensor da liberdade de imprensa. Sou
relator de matérias na área, inclusive do projeto de lei de acesso à
informação. Defendo plenamente a liberdade de imprensa. Acho que a
imprensa investigativa contribui decisivamente para a consolidação da nossa
democracia, para a defesa dos interesses da sociedade. Mas a espionagem e a
malandragem, não! Uma coisa é defender o papel da liberdade da imprensa. Outra
coisa é a bandalheira. O que a Veja fez, por exemplo, para obter as imagens da
matéria da Veja não é jornalismo sério, é bandalheira. Mentir, sacar
coisas contra outros, fazer ilações, também não é jornalismo sério”.
O deputado Emiliano José a Veja extrapolou, ultrapassou todos os limites e flertou com o crime.
"Melhor, cometeu crimes. Utilizou-se de meios criminosos na tentativa de desqualificar o ex-ministro e dirigente do PT, José Dirceu. Queria, com a matéria que publica esta semana, desqualificá-lo e condená-lo previamente, sabendo que o processo que o envolve e a outros está próximo de ser julgado.
Tentou invadir o apartamento em que se hospeda num hotel de Brasília, instalou câmeras no hotel para flagrar pessoas que o visitavam, entre outros crimes. A liberdade de imprensa não inclui esse tipo de procedimento. O bom jornalismo não usa o crime. No jornalismo, como, aliás, em nenhuma atividade humana, os fins não justificam os meios, ainda mais quando o fim, o objetivo, não tem nada de nobre, como neste caso. A revista Veja vai se caracterizando, de modo cada vez mais consistente, como um Rupert Murdoch à brasileira, um Murdoch convertido em partido político, um Murdoch que utiliza quaisquer meios para testar suas hipóteses, para garantir a consecução de suas pautas previamente orientadas, tal e qual o império midiático britânico fazia. Tanto quanto lá, no entanto, um dia a casa cai, um dia os crimes são descobertos, um dia, digamos assim, a tecnologia murdochiana criminosa vem à tona, como aconteceu agora, no caso de Veja".
O senador Humberto Costa também se posicionou. Para ele a matéria “evidenciou a necessidade de se discutir os limites de iniciativas de órgãos de imprensa danosas à imagem de pessoas públicas”, a partir de “acusações vazias, falaciosas, lançadas a partir de dados que nada expressam”. Segundo Costa, não se trata de cercear a liberdade de expressão, mas sim “pôr fim a eventos em prejuízo aos limites da ética jornalística”.
"A democracia conquistada neste país é um bem precioso, mas ela também vem acompanhada de outros valores: a apuração minuciosa dos fatos, a partir de provas contundentes e de resultados de investigações já feitas, é necessária antes de se lançar qualquer acusação sem cabimento contra qualquer pessoa: homem público, cidadão ou cidadã", argumentou o senador.
Segundo o gerente geral do hotel, Rogério Tonatto, a Polícia
Federal e a Polícia Civil já foram acionadas para investigar a origem das
imagens utilizadas pela reportagem. “Elas já estão no encalço de quem cometeu
esse crime. Nós estamos trabalhando em todas as frentes para que ele seja
solucionado o mais rapidamente possível. Nós estamos realmente indignados e
preocupados com tudo isso. Mas, uma coisa garanto: alguém vai pagar. Não sei
lhe precisar quem neste momento, mas alguém vai pagar. Vamos tomar todas as
medidas para que esse episódio não fique impune”, garantiu.
As emissoras Record e SBT noticiaram o episódio, além de
vários portais e blogs. Folha, Estadão e Globo se calaram sobre o assunto.
Procurada para opinar, a Veja se recusou a expor suas razões.
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